Fernando J. Pires de Sousa[1]
Nos anos 1970, o economista e ex-presidente do BNDES, Edmar Bacha, por meio de uma sátira, popularizou o termo “Belíndia” ao se referir ao Brasil, tendo em vista as infames desigualdades existentes no país. Para ele, o Brasil era uma combinação da Bélgica, pequena e rica, com a Índia, grande e pobre.
As duas décadas perdidas, anos 1980 e 1990, aprofundaram as desigualdades, aproximando o Brasil mais ainda da Índia. Dos anos 2003 ao golpe da Presidente Dilma Rousseff, em 2016, as desigualdades e a pobreza diminuíram significativamente, indo no sentido contrário, no rumo de um país mais semelhante à Bélgica. Todavia, essa tendência foi abruptamente interrompida com os governos Temer e Bolsonaro. A partir daí, passou-se ao desmonte das políticas de inclusão social, à deterioração econômica, ao aumento insuportável da pobreza, da desigualdade e da fome.
Nesse sentido, o receituário de “maldades” se encarregou obsessivamente de reduzir o papel regulador e protetor do Estado, ao preconizar uma redução brusca e abrangente de despesas públicas e investimentos em áreas cruciais de proteção social e trabalhista, cujos alvos preferidos são previdência, educação, saúde, assistência social e encargos incidentes nas folhas de pagamento das empresas. Obviamente, no geral, isto só pode ser efetivado a partir da eliminação de direitos e programas sociais, inclusive os regiamente garantidos no texto constitucional.
Pode-se apreender que reformas e políticas ortodoxas, como as preconizadas pelo programa do PMDB “ponte para o futuro”[2], implementadas por Temer e aprofundadas por Bolsonaro e Paulo Guedes, de restrição de recursos para privilegiar os mercados, têm atingido negativamente a sociedade, com redução do bem-estar social, principalmente dos segmentos de baixa e média renda que dependem essencialmente da oferta dos serviços públicos, como educação, saúde e assistência social.
Também é evidente que, na história política e econômica do país, o governo de Michel Temer e o atual se destacam como os mais perniciosos para os brasileiros, em especial para os trabalhadores e grupos vulneráveis da população, pela eliminação de direitos trabalhistas e sociais, com o desmantelamento do Estado e da proteção social, aprofundando a desigualdade, a precariedade e a exclusão social.
O Brasil é um país cuja desigualdade é uma das mais profundas, caracterizada por riquezas pessoais exorbitantes para poucos e dimensões abrangentes e profundas de pobreza e miséria para muitos, cujo quadro tem se deteriorado ainda mais. A insensibilidade e desprezo pelos mais necessitados, paralelamente a políticas neoliberais de desmonte do Estado e da seguridade social, têm deixado à deriva famílias inteiras que se amontoam nas praças e calçadas, notadamente nas grandes cidades.
O desemprego e a perda de moradia, por dificuldade de pagamento de aluguéis e de serviços básicos de luz e água, têm levado ao aumento da população em situação de rua no Brasil[3]. No rescaldo de mais de dois anos de pandemia, aliado ao elevado desemprego e aos aumentos da inflação e do endividamento, as condições de saúde se deterioraram, a fome retornou de forma cruel, houve piora do índice de desenvolvimento humano (IDH), e até a expectativa de vida regrediu[4], após um longo período de avanço.
Para completar este quadro de atraso, o governo atual constantemente ameaça eliminar todas as formas de indexação do orçamento público, em particular as inerentes a garantias constitucionais de repasses de recursos para a saúde e a educação, sem falar na Reforma Administrativa que procura eliminar direitos e a relativa estabilidade do servidor público. Há pouco sinalizou com a iminente desindexação dos reajustes do salário mínimo e das aposentadorias, o que inevitavelmente aprofundará a pobreza, atingindo os trabalhadores mais necessitados.
Diante de tudo isso, vale brevemente referenciar aqui os cinco axiomas indicados por Charles Gardou[5] (2018, p. 15) como fundamentos para a edificação de uma sociedade inclusiva: que ninguém tem a exclusividade do patrimônio humano e social; que a exclusividade da norma é ninguém e que a diversidade é todo o mundo; que não há nem vida minúscula, nem vida maiúscula; que viver sem existir é a mais cruel das exclusões; e que todo o ser humano nasceu para a igualdade e a liberdade.
Pelo exposto, nos parece que todos esses axiomas deixam a desejar na sociedade brasileira, notadamente os dois últimos. Viver sem existir significa apenas sobreviver, lutar para não morrer em consequência de carências múltiplas, como não ter o que comer, onde morar e cuidar da saúde. Existir, por outro lado, significa sair da condição de “invisível”, por ter condições de ir além da simples sobrevivência, significa satisfazer aspirações, desejos e ideais, ter, enfim, uma vida econômica, social, familiar e política digna. Isso contribuiria, portanto, para satisfazer o último axioma, de conceber uma sociedade mais igualitária e democrática, como garantia de uma liberdade plena para todos os cidadãos.
Portanto, urge romper definitivamente este processo de precarização e degradação social, conduzindo o Brasil por um longo caminho de prosperidade e de inclusão, sendo viável somente com a eleição do Lula no próximo dia 30 de outubro. Só assim, conforme a sátira de Edmar Bacha, poderemos almejar uma nação mais próxima da Bélgica do que da Índia.
[1] Professor titular da UFC, Coordenador do Observatório de Políticas Públicas.
[2] PMDB. Uma ponte para o futuro. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 29 de outubro de 2015.
[3] Houve um incremento de cerca de 16% de pessoas em situação de rua no Brasil, entre dezembro de 2021 e maio de 2022, conforme o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua. (Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/populacao-em-situacao-de-rua-no-brasil-cresce-16-de-dezembro-a-maio-diz-pesquisa/#:~:text=Em%20dezembro%20de%202021%2C%20segundo,pessoas%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20rua. Acesso em: 12.09.2022).
[4] O Relatório da ONU, de 2022, indica que a expectativa de vida global ao nascer regrediu de 2019, que era de 72,8 anos, a 2021, que ficou em 71 anos, interrompendo cinco décadas de crescimento ininterrupto. No centro e sul da Ásia e na América Latina e Caribe a regressão foi mais intensa. (AGÊNCIA BRASIL, 2022). Para o Brasil, este indicador passou de 75,3 anos em 2019 para 72,8 anos em 2021, praticamente o mesmo nível de 2008 (72,7 anos), como consequência da redução do IDH, que regrediu de 0,766, em 2019, para 0,754, em 2021, voltando assim ao patamar de 2014 (CONSULTOU JURÍDICO, 2022).
[5] GARDOU, Charles. A sociedade inclusiva: falemos dela! Não há vida minúscula. Belo Horizonte; Fino Traço: Editora UFMG, 2018. [Tradução Cleonice P. Mourão; Márcia Bandeira].