A MP 746/2016 e “Uma Ponte para o Futuro”

por Idevaldo da Silva Bodião

(Professor Aposentado da Faculdade de Educação da UFC)

O caminho do crescimento, segundo o governo Temer

No segundo semestre de 2015, ao tempo em que conspirava, abertamente, com os olhos postos na cadeira presidencial, o PMDB, do atual presidente golpista, Michel Miguel Elias Temer Lulia (Lulia!?), divulgou dois documentos[1] onde antecipava o conteúdo da caixa de maldades que foi aberta no início da gestão. Lá estão apresentadas e reafirmadas as bases do, assim denominado, novo crescimento sustentável: o equilíbrio fiscal e a inserção do Brasil na economia globalizada, para além das exportações das commodities minerais e agrícolas.

A garantia do equilíbrio fiscal implicaria, dentro dessa lógica, evitar o crescimento da dívida pública, de modo a garantir aumento do superavit primário para o pagamento dos juros da dívida e, talvez, alguma taxa de sua amortização; para isso, seria fundamental “estabelecer um limite para as despesas de custeio inferior ao crescimento do PIB, através de lei, após serem eliminadas as vinculações e as indexações que engessam o orçamento“. (Uma ponte para o futuro, 2015, p. 18). O instrumento dessa ação já foi apresentado aos brasileiros e se chama PEC 241/2016 que, por 20 anos, congelará os gastos com saúde, educação, saneamento e segurança, por exemplo. Dentro do mesmo espírito, uma reforma no sistema previdenciário já foi anunciada, ainda que não tenha sido formalmente apresentada.

Para estimular a atração dos capitais, que alimentariam nossa inserção na economia internacionalizada, seria preciso recriar um ambiente econômico estimulante para o setor privado, que deveria ser acompanhado de esforços governamentais para abertura de novos mercados externos (Uma ponte para o futuro, 2015). Uma “flexibilização” das leis trabalhistas, também anunciada, mas ainda não apresentada, objetiva diminuir os custos da produção.

É nesse quadro de mudanças que se encaixa o encaminhamento da Medida Provisória 746, onde se apresenta um novo modelo de ensino médio e institui a “Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral”; trata-se de aumentar o excedente de mão de obra que facilitaria, para os empresários, as condições de negociações salariais, depois de aprovada a já cogitada legalização da supremacia das convenções coletivas sobre as normas atualmente vigentes.

Mudanças na escolarização de ensino médio

Sustentado pelo frágil arrazoado de denúncias dos contínuos baixos índices nas grandes avaliações, do caráter propedêutico no nosso ensino médio e da “janela demográfica”, que se encerraria em meados da próxima década, o PMDB considera “que o ensino de 2º grau (sic) no Brasil precisa de uma reforma completa” (A travessia social, uma ponte para o futuro, s/data, p. 15) e urgente, o que pode ser feito através da “diversificação do ensino médio, de acordo com a vocação e o interesse dos alunos.” (Idem, p. 16) Há, naturalmente, divergências importantes sobre a necessidade de reforma dessa etapa da educação básica e, principalmente, sobre os horizontes a serem dados a essa reforma.

Na exposição de motivos que o ministro da educação encaminhou ao presidente da república, defendendo a promulgação da Medida Provisória nº 746/2016, ele afirma que a principal determinação da MP é “a flexibilização do ensino médio, por meio da oferta de diferentes itinerários formativos, inclusive a oportunidade de o jovem optar por uma formação técnica profissional dentro da carga horária do ensino regular. ” (EM nº 00084/2016/MEC, de 15 de setembro de 2016)

A proposta de escola de ensino médio em tempo integral

A primeira alteração na LDBEN proposta pela MP 746 eleva, progressivamente, a carga horária anual das atuais 800 para 1400 horas, de acordo, segundo o texto legal, com as metas e estratégias estabelecidas no Plano Nacional de Educação.

Análises das metas que aludem aos três temas envolvidos nessa medida provisória, ensino médio (Meta 3), escola em tempo integral (Meta 6) e educação profissional técnica de nível médio (Meta 11) permitem afirmar que a proposição se destina a um número reduzido de escolas e de alunos. Em entrevista concedida à Associação de Jornalista de Educação – Jeduca[2], o secretário de Educação Básica do MEC, Rossieli Soares da Silva, confirma esse raciocínio, ao dizer que os parâmetros do ministério definem como 30 o número máximo de escolas, por estado, que poderão aderir ao programa, o que permitiria, dentro das expectativas do MEC, atingir 257 mil matrículas, com os recursos disponíveis atualmente; os dados do Censo Escolar de 2015 indicam termos cerca de 6,5 milhões de matrículas no ensino médio público regular, o que evidencia que a proposta de escola em tempo integral destina-se a menos de 4% do alunado atual.

A medida provisória institui, no seu artigo 5º, a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (PFIEEMTI), prevendo repasses de recursos do Ministério da Educação aos estados (e Distrito Federal) que aderirem à proposta, pelo prazo máximo de quatro anos; tais recursos somente poderão ser aplicados nas escolas implantadas a partir da vigência da MP (Art. 6º, inc. I), respeitada a disponibilidade orçamentária (Art. 6º, § 2º). Se considerarmos que os valores per capita do FUNDEB, mesmo aqueles específicos para escolas em tempo integral, são insuficientes para custear a manutenção e desenvolvimento das escolas públicas, tanto que a PFIEEMTI se propõe a aplicar, até o final do governo Temer, R$ 2 mil, por aluno, por ano, através do FNDE, e se considerarmos que os estados do nordeste têm necessitado dos recursos provenientes da complementação da União para o atual fundo de financiamento da educação básica, há de se perguntar, como se manterão, depois de quatro anos, essas escolas em tempo integral.

 A estrutura do novo currículo do ensino médio

Segundo a proposta da MP 746, da carga horária total do ensino médio de duas mil e quatrocentas horas, no máximo, mil e duzentas horas deverão ser dedicadas ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular, enquanto a outra metade deverá ser composta por, pelo menos, dois dos seguintes itinerários formativos específicos: (i) linguagens, (ii) matemática, (iii) ciências da natureza, (iv) ciências humanas e (v) formação técnica e profissional.

A decorrência mais visível dessa proposição é a instituição da formação técnica e profissional, através de sua inclusão como um dos itinerários formativos, como uma possibilidade para todas as escolas de ensino médio, com a sedutora, porém falsa, expectativa da empregabilidade. Essa arquitetura curricular permitirá que as escolas privadas continuem a fazer o que sempre fizeram, preparar seus alunos para os exames de seleção aos cursos superiores, enquanto possibilitará a legalização de uma das precariedades das escolas públicas, a falta de professores para específicas disciplinas, uma vez que as escolas poderão, para compor os itinerários formativos a serem oferecidos, privilegiar as áreas nas quais elas têm professores nos seus quadros.

Junto com essas mudanças, vêm, também, as exclusões das obrigatoriedades de Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia, como disciplinas curriculares, ao lado da instituição do Inglês como língua estrangeira obrigatória que, aliás, será oferecida a partir do sexto ano do ensino fundamental. Língua Portuguesa e Matemática são as únicas disciplinas mantidas como obrigatórias durante todo o percurso escolar do ensino médio.

Crise do ensino médio, ensino profissionalizante, itinerários formativos …

É certo que temos problemas com a escolarização do ensino médio, no entanto, o mesmo se pode dizer para todas as demais etapas da educação básica. É certo que os índices das escolas públicas, nas grandes avaliações, como IDEB, Enem ou PISA, por exemplo, não são animadores, mas é preciso perguntar: o que, afinal, medem essas avaliações? Com que grau de confiabilidade essas avaliações retratam o currículo, no seu sentido amplo, de cada escola brasileira? O que pode querer dizer o fato do PISA ser coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, uma organização que aglutina países em função da lógica do desenvolvimento assentado na economia de livre mercado?

Fossem outras as lógicas das análises e, certamente, seriam outras as proposições que emergiriam de outras matrizes da crise que, dessa forma, seria diagnosticada; no entanto, nada disso foi considerado, pois a proposta já nasceu autoritária, ao ser encaminhada na forma de medida provisória, o que a faz entrar em vigência a partir da sua publicação, tendo o prazo restrito de 120 dias para discussões e modificações na sua tramitação no congresso nacional.

Segundo a lógica das restrições orçamentárias previstas na PEC 241, certamente não teremos os recursos necessários para a expansão das matrículas, da educação infantil à pós-graduação, como propõe o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014) e, nessas condições, o MEC está definindo sua política de focalização das ações. Se a gestão FHC concentrou suas ações no ensino fundamental, a gestão Temer parece ter escolhido priorizar o ensino médio, em detrimento da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino superior.

Quanto à política curricular, em si, ela mais desarrumará a estrutura atual, do que propriamente organizará um novo funcionamento escolar; quem tem alguma experiência na implantação de políticas curriculares sabe que há uma distância imensa entre o que se define nos documentos oficiais e o que ocorre no cotidiano das escolas, públicas e privadas. Para que os textos legais se convertam em práticas pedagógicas é preciso um intenso, contínuo e consistente trabalho de convencimento dos professores, atores centrais a reger o cotidiano das salas de aula; não há indicações de que haverá verbas para tal. A supressão de disciplinas como Artes, Filosofia e Sociologia, evidencia a intenção de impulsionar formações pragmáticas, técnicas e acríticas.

Por outro lado, a diversidade de itinerários formativos, aspecto recorrentemente enaltecido pelo discurso oficial, possivelmente não se efetivará com a abrangência que vem sendo divulgada; o mais provável é que as escolas das redes públicas se restrinjam aos itinerários que mais se ajustem ao quadro de professores que dispõem nas suas lotações, e não o oposto.

A possibilidade dos alunos, depois de terminada sua escolarização de ensino médio, voltarem a cursar outro itinerário formativo parece outra sedução que não se efetivará, uma vez que não teremos os recursos necessários para ampliação de matrículas nas escolas públicas, uma decorrência natural da aprovação da PEC 241/2016.

O resultado final da regulamentação da MP 746/2016 será a instituição de três matrizes constituintes do ensino médio: (i) a das escolas privadas, que continuarão preparando seus alunos para os processos seletivos para o ensino superior; (ii) as escolas públicas profissionalizantes em tempo integral e (iii) as escolas públicas regulares, que poderão incluir o itinerário formativo de profissionalização. Consolidar-se-á (mesóclise?), desse modo, uma prática que já está implantada em alguns estados brasileiros, como o Ceará, Pernambuco e São Paulo, por exemplo, que é a existência de “duas redes” escolares, na mesma rede pública de ensino: o ensino regular e o ensino profissionalizante em tempo integral. Enquanto esta, que é seletiva, garante condições para uma formação diferenciada, e mais consistente, o ensino regular continuará a titular (que é diferente de formar) os estudantes dessa etapa final da educação básica. Enquanto a escola profissionalizante em tempo integral melhorará, relativamente, a perspectiva de empregabilidade para poucos, o ensino regular, ainda com seu itinerário de formação técnica e profissional, continuará ocupando o tempo de muitos, sem lhes oferecer condições reais de almejar empregos ou de continuar suas escolarizações no ensino superior.

Com tudo isso, o constitucional direito à educação (Art. 205), que deveria ser universal pela sua própria natureza, sofre mais um golpe na sua trajetória de efetivação.

[1] Uma ponte para o futuro (Fundação Ulysses Guimarães, de 29 de outubro de 2015) e A travessia social: uma ponte para o futuro (Fundação Ulysses Guimarães, sem data).

[2] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=EIeY9cIdsRg&feature=player_embedded. Acesso em 6out2016.

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